quinta-feira, 12 de março de 2009

A Casa

Porto, Dezembro de 1977

Não, meu Deus, não. Recomeçaram. São duas da manhã. Hoje não me deixam dormir. E o pior é que tenho medo. Um medo de morte. Olho por cima dos lençóis e vejo luz onde queria ver escuridão. Ouço-lhes as vozes, os talheres a bater nos pratos, aquela música séc. XVII. Isto é horrível, e a minha mãe, no quarto ao lado, que não acorda. Vou ter que lá ir. A curiosidade sobrepõe-se ao medo. Tenho que tentar ver. Tenho que Os ver. Levanto-me e vou, pé ante pé, até à porta da sala de jantar, o barulho aumenta, o medo e a curiosidade também. Não consigo perceber uma palavra do que dizem. A música toca alto, pelo barulho dá para perceber que uns estão a comer e outros a dançar. Encho-me de coragem e olho pela fechadura, não se vê nada… abro a porta!
A luz apaga-se e lá dentro não está viv'alma! Ficou um cheiro fortíssimo a velas! Está escuro. Estou aterrorizado. Não consigo voltar para trás. Não consigo virar as costas à sala e voltar para o meu quarto. Vou ter que ter coragem. Eles não me querem fazer mal. Se quisessem já o tinham feito, não fugiam, não desapareciam assim que eu chego. Vou entrar na sala e acender a luz. A mesma luz que ainda agora estava acesa!
Acendo a luz e não encontro o mínimo vestígio de ali ter estado alguém. No fundo era isto que eu esperava encontrar. Nada! Teria eu sonhado? Serei sonâmbulo? Mas então e o cheiro a velas? Não pode ser, não, não sonhei. Eles existem e estão aqui! Os fantasmas da minha casa estão aqui. Estão a ver-me e eu não os vejo. Não é justo. E quem serão e o que querem? Será que me lêem o pensamento? ´Tou bem lixado, sim senhor! Bem, vou apagar a luz, fechar a porta e vou para o quarto. Não é fácil mas vou ter que ter coragem! Do interruptor até à porta ainda são uns quatro metros. Quatro metros às escuras aqui dentro. Meu Deus ajuda-me!
Ok, apaguei a luz, agora corro até à porta e fecho-a. Pronto. Já está! Parece que está tudo bem. Deus queira que eles se tenham assustado tanto comigo, como eu com eles. Pode ser que não voltem tão cedo. Já há muito que não os ouvia. Cheguei a duvidar de mim mesmo, mas afinal existem. E eu fui lá, porra tive coragem, ia-me cagando todo, mas fui lá!
Vou-me deitar e tentar dormir. São quatro horas e recomeçou a Festa. Cabrões de merda! Eu vou-me passar, esta merda só em filmes, e daqueles que a minha mãe não me deixa ver! Outra vez a luz acesa, ainda há pouco a apaguei. As vozes, o barulho dos talheres e a música. A quem contar ninguém acredita! Podia tentar gravar as vozes, os barulhos e a música, mas o que é que isso ia provar? Eu conseguiria o mesmo registo gravando o som de um qualquer filme da série B!Tenho que voltar lá. Chamo a minha mãe ou não? Não, não chamo, vou lá sozinho. Amanhã vou contar isto ao Beto, ele acredita em mim! Deve ser o único, se bem que eu acho que a minha mãe também sabe “disto” mas não me quer assustar e por isso nunca me disse nada. Amanhã vou confrontá-la com esta cena.
Lá vou eu, todo cagadinho, pé ante pé ao encontro do desconhecido. Acreditem que é arrepiante, e tendo em consideração que só tenho quinze anos… que se lixe, vou voltar lá!
(…)
E voltei… vezes sem conta! E senti sempre o mesmo, e cheirei sempre o mesmo… nunca vi nada! Era assim na minha velha casa da Foz – que saudades! – Eles estavam lá… eles ficaram lá.
Não consigo explicar melhor do que isto, mas que nesta vida existem muitas coisas que não conseguimos explicar, existem!

José Manuel Sarmento - Dezembro 2004

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